A elite agropecuária nos anos 60
Quando terminei o II Grau, o Diretor de nossa escola convidou o Presidente João Belchior Marques Goulart para ser o paraninfo da Turma. Algumas vezes tive dúvidas se o presidente aceitaria. Mas, aceitou.
Os formandos, com raras exceções (entre as quais, eu) faziam parte da elite agropecuária do Rio Grande do Sul. Meninos e meninas futuros herdeiros de fazendas, com um futuro garantido. Poderia haver algum suspeito de esquerdista?Claro que não!Aliás, se alguém ousasse sugerir tal sandice, receberia uma surra de rebenque.
A formatura, foi o fim da época de irresponsabilidade juvenil. Com o vestibular começaria a se delinear uma carreira promissora...se não houvesse intromissão da Ditadura.
Por sermos afilhados de Jango, “as meninas dos olhos” da nossa geração, olhos estranhos e famintos começaram a nos vigiar. A coisa era tão extrema que incomodava. Eu me sentia pouco a vontade até de ir ao banheiro, pois sabia que alguém escutava ou espiava pela fechadura. Pode parecer exagero, mas era isso mesmo. As pessoas queriam que soubéssemos que estavam de olho em nós. Até mesmo nossas famílias começaram a nos vigiar para saber o que estava acontecendo de “anormal”. Só que esse anormal não acontecia conosco, mas com os espiões da CIA que queriam minar o nosso prestígio e destruir a nossa imagem, para nos desacreditar. Era o Dragão matando os filhotes da Fênix, para que não houvesse qualquer tipo de resistência.
Em 31 de março de 1964, os desconcertados estudantes, pais e todo o país souberam o que era toda aquela movimentação, calúnia, suspeitas e acusações: o Golpe Militar tomou as rédeas do país. Mas, os efeitos colaterais foram bem maiores. O pai de uma colega de faculdade, cometeu suicídio quando soube da prisão e abuso da filha. A família a culpava pela morte do pai, mas nós mantivemos o apoio à ela. No túmulo do pai, apenas uma foto, data de nascimento e de morte...nem uma única palavra de saudades. Quando visitei o túmulo, fiquei chocada: a Ditadura destroçara mais uma família e comprometera o futuro da única filha.
Mas, os danos não pararam por aí: muitas organizações foram invadidas, estudantes presos, militantes torturados e mortos . Casais separados, amigos separados, pais e filhos se olhando com desconfiança. Parecia um trecho do Apocalipse.
Ou o Inferno de Dante.
O motivo, mesquinho, era para evitar que o Brasil virasse uma República comunista. Tá de brincadeira???O país do futebol e do Carnaval virar uma república comunista???Que piada!!!!!!!(ah!ah!ah!)Imagine, o povo mais alegre e festeiro do universo vivendo num regime totalitário!!!Seria a morte desse país...mas, não pensava assim Mr. Kennedy nem Mr. Sorensen da CIA(que tive o desprazer de conhecer). E, por essa mentira maquiada e bem embalada, lá se foi o nosso futuro pelo ralo. Muitos me dizem “estás viva”, “estás bem” e eu pergunto “como podes saber se eu não estaria melhor?”, “como podes saber se o pai de minha colega não estaria vivo e orgulhoso dela?”
Resta a justiça a ser feita. Kennedy, já se foi. Sorensen, sabe Deus!Mas, o estrago feito por eles perdura. Não há como olhar o passado e pensar que tudo poderia ser diferente. O meu sonho de consumo era apenas me formar, ser bem sucedida e simploriamente feliz: filhos, netos essas coisas de gente simplória. Mas, a Ditadura, ignorando que a cada ação corresponde uma reação, me empurrou numa direção diferente. Depois de ter dito mil vezes “a guerra do Vietnam é estúpida” eu estava envolvida numa guerra repleta de ódio e ressentimento. Nessas horas, não me parecia estranho lutar, pois eu estava defendendo os meus territórios: minha vida, minha carreira, minha paz.
Bem se diz “não acorde um leão adormecido” pois foi o que aconteceu dentro de mim. Há aqueles momentos em que você é instinto, onde o seu raciocínio se torna frio e calculado e você é apenas um predador. Na verdade, leões são nobres, mas uma patada sua destrói um homem.
Se você encontrar um leão dormindo, deixe-o dormir. Ele pode estar com fome e te matar para o lanche.
Agora, 40 anos depois, encontra-se o que restou dos afilhados e amigos. São poucos e todos tem rugas profundas na alma e um imenso ressentimento contra o mundo, mesmo contra os amigos que sumiram: “deve ter fugido, covarde!” ou “ele não queria arriscar sua pele” ou “agora, depois de tanto tempo, o que ele quer?”
Começa o outono, e a Ditadura pode dizer que destruiu a elite agropecuária do Brasil. No nosso lugar, alguns chinelões novos ricos, sem saber a diferença entre um zebú, búfalo ou nelore, são a nova “elite”. Para nós havia um apelido que eles não poderão usar “a fina flor da grossura”porque não são nem fina nem flor. Fica só a grossura e a chinelagem, tão ao gosto dos reformadores do mundo ao fazer esses cruzamentos genéticos entre galinha e urubú.
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