Um século de usurpação e posse – os filhos de Jacintho.
Ano de 1903. Dona Hipólita acabou de acordar e nota alguma movimentação dos empregados. Chama um deles:
-João, o que está sucedendo?
-São os homens da lei, patroa. Vieram entregar um papel.
-Manda entrar.
E o rapaz manda entrar aquele bando que irá lhes roubar a tranqüilidade e seu emprego.
-A patroa mandou entrar.
-Bueno!
Dona Hipólita pergunta:
-A que devo sua visita?
-Trouxemos um mandado. A senhora tem que sair da fazenda.
-Por quê?
-Seu marido tinha dívidas. Ou paga ou deixa a fazenda!A senhora tem dinheiro?
-Posso mandar buscar.
-Não há tempo. A senhora tem que desocupar a fazenda até as 5,00hs da tarde.
-Mas, assim tão de repente, não consigo fazer uma mudança.
-A senhora pode mandar buscar depois.
Ela ainda tenta argumentar, pedindo tempo para se comunicar com parentes que possam acolhe-la. Mas, os oficiais são implacáveis:
-Se a senhora não sair agora, vou chamar a polícia.
As crianças, assustadas, choram e agarram-se as suas saias. Um oficial lhe estende um papel para que ela assine. Ela desenha seu nome na folha, já que não sabe ler. Poderia ser apenas uma carta ou um ofício mesmo, mas nunca teremos certeza. Só teremos certeza de que aquela mulher foi ludibriada e a herança de seus filhos roubada. Sai apenas com a roupa do corpo e nada mais.
Enquanto caminha chorando, ela lembra de seu marido que há pouco foi levado ao Hospício São Pedro. Ele teve carbúnculo na testa e um curandeiro queimou o tumor com um ferro em brasa. Ele começou a mudar de comportamento, sendo acusado de louco e mandado ao manicômio.
Quase na mesma hora, Eliseu se reúne com seus irmãos e sua mãe. Vão repartir os bens de Jacintho entre eles. Os filhos de Jacintho são ignorados como herdeiros legítimos, diretos e necessários e sua sucessão se faz por colateralidade.
Em toda a cidade se comenta a doença de Jacintho. Mas, ninguém ergue um só dedo para evitar esse crime triplamente qualificado: usurpação, posse ilegítima, registro em cartório sem transferência. Alguns arriscam dizer que sentem pena – mas, não arriscam enfrentar os posseiros. Nem mesmo a maçonaria que Jacintho freqüentava, foi capaz de fazer qualquer ação para defender seu afiliado. A Comarca de Uruguaiana, age como numa terra sem lei – acolhe os crimes contra Jacintho como se fossem ações de arresto de bens. A Justiça, ali, só existe em função de amizade pessoal ou suborno. Se um bandido é amigo dos juízes e escrivães, ele é defendido como se fosse decente. Se não é amigo, mesmo decente é tratado como um bandido.
Dona Hipólita chega a cidade desorientada: embora sendo rica, não tem idéia do que fazer para pegar o dinheiro que seu marido deixou. Ele sempre fez tudo sozinho. Os dias passam e ela sem saber o que fazer, resolve trabalhar de doméstica para dar de comer aos filhos. Como ninguém aceita empregada com filhos, ela entrega seus filhos aos cuidados de alguns parentes. E assim, uma fazendeira milionária, usurpada em seus bens, vai esfregar chão para algumas mulheres que antes a invejavam.
Com o tempo, ela desiste de pegar dinheiro do armazém, da fazenda, da chácara, do açougue e do curtume. As pessoas a tratam mal quando ela vai pedir o dinheiro em suas propriedades, como se ela estivesse pedindo esmolas – sendo que o dinheiro é herança legítima sua e de seus filhos. Mas, os irmãos de Jacintho não esquecem e logo em seguida, embolsam além do patrimônio, a fortuna pessoal da conta bancária de Jacintho.
Os filhos (nascidos em berço de ouro) de Jacintho, passam a ter uma vida pobre e cheia de privações. O dinheiro ganho honestamente por Jacintho está agora nas mãos de seus irmãos desonestos. E os filhos dos usurpadores começam a ter a vida de seus sonhos: o luxo que os filhos do Jacintho tiveram e teriam se não houvessem sido roubados. Colégios particulares, boa moradia, começam a fazer parte da vida dos filhos dos posseiros.
Muitas vezes Dona Hipólita chora à noite. Se pergunta qual pecado teria ela feito para merecer tamanho castigo! Ela não sabe o que significa maracutaia, usurpação, posse ilegítima e transferência dolosa. Seu pecado foi não ter maldade e não olhar com desconfiança para os abutres que rondavam seu ninho. Ela se pergunta se não há Justiça, pelo menos Divina. E adormece chorando, com saudades de seus filhos.
Ano de 1945. Os herdeiros legítimos e necessários de Jacintho entram com uma ação de anulação do inventário feito por Eliseu. Ganham a causa é publicado no Diário Oficial a chamada dos herdeiros, mas o advogado, intimidado por ameaças, foge. Os posseiros não perdem tempo e arrancam algumas folhas dos livros no Cartório.
Os posseiros se reúnem: agora eles sabem que tem herdeiros reclamando sua herança. Começam campanhas difamatórias contra os herdeiros para torná-los abjetos perante a sociedade. Acusados, se defendem: que prova tem as pessoas de que foram eles quem espalharam as calúnias? Nem precisa responder – a quem mais interessa tornar um herdeiro como indigno? De toda a forma, aproveitam ao máximo a herança, como um bando de abutres sobre uma carniça...
Ano de 2011. Artheme encontra alguns documentos centenários que qualificam esses crimes hediondos: internação compulsória, usurpação de bens, registro sem transferência, relatos de ameaças. Olha com atenção e reconsidera. Escolhe um castigo inesquecível. O mesmo que ela levou sem merecer. E pensa: a Justiça, a minha Justiça, tarda mas não falha e nem poupa ninguém...
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